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Crack invade a construção civil na região

As pedras invadiram a construção civil da região. Não as de brita, essenciais em um canteiro de obras. Mas as do crack.
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Diário Web – Allan de Abreu

As pedras invadiram a construção civil da região. Não as de brita, essenciais em um canteiro de obras. Mas as do crack. É cada vez mais comum pedreiros e serventes trabalharem sob efeito da droga, na tentativa de aliviar o trabalho duro. Em pouco tempo, porém, perdem o emprego pelas faltas constantes e arrasam a própria saúde. Para os patrões, fica o prejuízo do atraso nas obras e a perda de material, furtado para ser trocado pela droga.

Não há números sobre o problema, mas o Sindicato dos Trabalhadores na Construção Civil na região admite que o crack se alastra rapidamente pelo setor, principalmente entre os mais jovens. “Boa parte da meninada tem sim trabalhado sob efeito da droga”, admite o presidente da entidade, Nelson Ioca. São 13 mil trabalhadores no setor na região, estima a entidade. Atualmente, há 36 pedreiros e serventes dependentes da droga internados em clínicas de recuperação de dependentes químicos da região.

R.A., 35 anos, é um deles. Servente, conheceu o mundo do crack quando trabalhava na construção de uma casa em Mirassol. “Comecei com a maconha, que relaxava e ajudava o serviço a ficar mais leve.” Tarefas pesadas, como preparar cimento, carregar tijolos e cavar alicerces, pareciam mais fáceis.

Até que, certo dia, no meio do canteiro, um colega servente mostrou a ele uma pedra de crack. A maconha ficou para trás. “Eu fumava escondido ou quando estava sozinho na obra. Ligava o rádio e viajava, era como se eu não estivesse trabalhando.” O uso era mais frequente nos dias de pagamento. “Eu ia na biqueira (ponto de venda de droga) e gastava mais da metade do salário com pedra.” O crack tomou a vida de R.A. O uso era diário, dentro e fora do canteiro de obras. No auge, eram 20 pedras por dia.

Seis meses depois, o servente começou a faltar ao trabalho. “Eu virava noites fumando em qualquer canto, e esquecia do serviço.” Acabou dispensado, rotina que se repetiria inúmeras vezes – só nos trabalhos com carteira assinada, foram seis demissões. “Eu já não rendia no trabalho, nem queria saber de nada, só do crack.” Desempregado, decidiu procurar ajuda no Centro de Recuperação da Vida (Crevi), de Mirassol, há quatro meses. “Quero retomar a minha profissão, agora de um jeito limpo.” Ele já ensaia o retorno, ao coordenar a construção de novos alojamentos no Crevi.

Das nove instituições que tratam dependência química na região, apenas duas não contavam com nenhum operário da construção civil na última semana. A Associação Pão Nosso, de Catanduva, é a que mais abriga trabalhadores do setor, 12 no total. “É a profissão mais comum que recebemos”, diz o coordenador da entidade, Luís Rogério Sabino.

Cultura

Para a psicóloga Mara Lúcia Madureira, especialista em dependência química, o crack encontra terreno propício entre serventes e pedreiros. “É parte da cultura do setor o consumo de álcool, e a bebida se torna cada vez mais porta de entrada para o crack.” Essa relação, segundo ela, se explica pelas condições duras de trabalho. “O indivíduo se vale do crack na ilusão de que terá mais energia, já que a pedra é estimulante do sistema nervoso central. Mas esse estímulo é só aparente: com o tempo, há perda de concentração, cansaço e danos físicos severos.”

J.R., dono de uma construtora em Rio Preto que não quis ser identificado, estima que 40% de seus operários consumam drogas. O que, inevitavelmente, resulta em prejuízos. Os mais constantes são de ordem material, como os furtos de objetos. “Já me levaram cimento, furadeira, e um rompedor de concreto de R$ 5 mil.” Mas há também a perda de mão de obra. “Perco bons trabalhadores por causa da droga. Ele começa a faltar demais, e o jeito é dispensar”, diz. Há um ano, o empresário flagrou um operário usando crack no canteiro de obras. Foi demitido, e tempos depois acabou preso por tráfico.

Vício provocou demissão

O rio-pretense F.R.I., 30 anos, começou cedo na construção civil. Aos 14 anos, foi trabalhar como servente com o sogro. Aos 19, se tornou pedreiro, e passou a cuidar de obras grandes na região, como edifícios e prédios comerciais. Mas aí veio o crack, e arrasou com a boa fama do rapaz. Desempregado, virou morador de rua, até que, há dois meses, internou-se em uma clínica de Mirassol na tentativa de se livrar do vício pelas pedras. “Quero recuperar minha profissão. Talento eu tenho.”

A primeira droga que F.R.I. experimentou foi a maconha, aos 16 anos. Depois, aos 27, veio o cigarro da erva misturada com pequenas pedras do crack, o chamado mesclado. Foi a porta de entrada para o crack puro. O rapaz usava na obra, e quando acabava largava tudo para ir atrás de mais. “Com o tempo, eu passei a não render no serviço como antes. Só pensava na droga.”

Após um ano de uso, foi demitido depois de faltar do trabalho três dias seguidos – ficou em um imóvel abandonado da zona norte, fumando crack sem parar. Largou da mulher, e passou a morar na rua. Recolhia material reciclável, e com o dinheiro comprava pedras. Fumava mais de 30 diárias, e chegava a ficar cinco dias consecutivos sem dormir. “Vivia sujo, feito zumbi. Minha vida acabou.” Também passou a furtar, e foi preso em flagrante pela PM. Foram quatro meses na cadeia. Quando saiu, decidiu se internar. “Quero a felicidade minha e da minha família.”

Sindicato prepara campanha antidrogas

Diante do rápido avanço do crack nos canteiros de obra da região de Rio Preto, o Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil vai promover assembleias nas maiores obras em andamento no Noroeste paulista para abordar o problema das drogas. “O objetivo é esclarecer melhor os riscos do crack para a saúde do trabalhador”, diz o presidente da entidade, Nelson Ioca. A presença da droga na construção civil regional surgiu há cerca de três anos, segundo Ioca. Desde então, tem se tornado cada vez maior. “Chegamos a uma situação preocupante”, afirma o sindicalista.

O uso de drogas, para Ioca, favorece a ocorrência de acidentes de trabalho, que têm crescido em Rio Preto. De acordo com o Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest), foram 822 acidentes em 2010, 1.046 em 2011 e 1.133 no ano passado. O órgão, ligado à Secretaria de Saúde da cidade, não tem trabalho específico para trabalhadores da construção civil dependentes químicos. Apenas orienta sobre os riscos que todos o trabalhador dependente químico está sujeito.

O Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo (Sinduscon) também promete agir para combater o problema. “Estamos preparando uma campanha de conscientização dos trabalhadores”, afirma o vice-presidente de relações de capital e trabalho do sindicato, Haruo Ishikawa. Segundo ele, já foi produzido um manual sobre os riscos do crack.

Ele também negou que as condições de trabalho do setor incentive o uso da droga. “O crack está na construção civil assim como está em outros setores da economia. A maioria dos usuários, pelo que constatamos, conhece a droga fora do ambiente de trabalho.” O Diário entrou em contato com o Ministério Público do Trabalho (MPT). Mas nenhum procurador em Rio Preto quis se pronunciar sobre o assunto.

Crack é problema na cana


Usar crack para encarar o trabalho duro não é exclusividade da construção civil. Cortadores de cana também costumam recorrer à droga para aumentar a produtividade na lavoura – sob efeito da pedra, chegam a cortar até 18 toneladas de cana durante dez horas por dia, sob sol forte.

Em junho de 2008, quando o problema foi revelado com exclusividade pelo Diário, havia pelo menos 50 cortadores viciados em crack na região, segundo sindicatos e entidades que tratam dependentes químicos. Hoje, o problema é menos grave devido à mecanização da lavoura, mas ainda persiste, segundo o coordenador de projetos da Associação Pão Nosso, em Catanduva, Luís Rogério Sabino. “Temos recebido menos cortadores, mas sempre aparece um ou outro.”

Para a Pastoral do Migrante, a remuneração por produtividade no canavial está diretamente ligada ao uso de drogas pelos bóias-frias. Em 2007, documento divulgado pela ONU alertou sobre o consumo de drogas pelos cortadores.